Pomba-Gira da Figueira
As
lágrimas desceram lentamente pelo rosto de Giulia no momento em que ela
fechou a porta e olhou para a cama velha com lençóis amarelados. Ali,
naquela pocilga, passaria a viver a partir de agora. Antigas lembranças
passaram diante de seus olhos. Resquícios de um tempo em que imaginara
ser feliz. O casamento com Aprígio parecia ter sido há tanto tempo, e na
realidade apenas cinco anos se passaram. O amor enorme que crescia a
cada dia nos tempos de noivado, foi aos poucos se transformando em um
apagado sentimento sem definição. Amizade? Não, nem isso, apenas
desamor, acompanhado de uma cruel sensação de mágoa. Dias e noites
passados em solidão conseguiram destruir o castelo de sonhos. Quando
conheceu Hugo, amigo de seu marido, o mundo pareceu criar novas cores.
Ele sim, lhe dava atenção e carinho. Um mês inteiro de amor sem medida,
paixão tórrida que arrebatava seu corpo e mente em total loucura
descuidada. Aprígio um dia voltara, sem aviso, e os pegara em sua cama.
Alucinado pelo ódio, desferiu três tiros sobre o amigo, matando-o
instantaneamente. Ela, nua, correu. A lembrança das janelas se abrindo
com pessoas apontando sua nudez entre comentários maldosos ainda
envergonha. Alguém (quem seria?), jogou um velho vestido sobre ela que
pode enfim cobrir-se, mesmo enquanto corria. Conseguira alguns trocados
com uma prima que, no entanto, não a queria por perto e foi com esse
dinheiro que alugou esse quarto miserável em que agora se encontra. Não
há um amigo, um parente ou mesmo conhecido que a aceite e lhe estenda a
mão. Sua vida acabou por completo. Na pequena cidade não há quem não a
aponte com maldade (um pouco de nojo também). Ninguém entende o que se
passou e ninguém quer escutá-la. Mas se nem ela mesma consegue entender e
se perdoar, como esperar isso dos outros? Perdida em meio a esses
pensamentos, relanceia o olhar pelo aposento e nota, a um canto, um
lençol rasgado. É isso! Pega o pano e percebe que o rasgo, se aumentado,
será uma grande tira. Lentamente passa a rasgar e amarrar as tiras. A
janela é alta e nela prende a ponta do tecido, a outra ponta é enrolada
no pescoço. Arrasta o pequeno criado-mudo e sobe. Com um pequeno pontapé
no móvel, lança-se à morte. Seu espírito totalmente atordoado
perambulou por negros caminhos de escuridão profunda. Anos se passaram
até que Giulia conseguisse perceber os erros que cometera. Hoje,
passadas algumas décadas, ela atende em nossos terreiros com o nome de
Pomba-Gira da Figueira. Tornou-se mais uma trabalhadora dessa grande
falange que, apesar de ser pouco conhecida, sempre é lembrada em nossas
trunqueiras.
Laroiê a Pomba-Gira da Figueira!
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